DE GRAÇA!
Periferia em destaque: quase 100 obras ocupam a Pinacoteca do Beiru
Espaço reafirma a favela como espaço de criação, educação e transformação social

Por Grazy Kaimbé*

No bairro de Tancredo Neves, uma das regiões mais populosas da cidade, a arte tem se afirmado como ferramenta de memória e resistência. A Pinacoteca do Beiru inaugura neste sábado, 25, às 16h, três exposições inéditas, com quase 100 obras distribuídas pelos três pavimentos do espaço. As mostras ficam em cartaz até 25 de dezembro. A programação gratuita encerra a segunda edição do Festival de Artes Visuais da Pinacoteca e anuncia os artistas premiados no I Salão de Artes Visuais.
Com mais de 800 trabalhos inscritos, o Festival de Artes Visuais da Pinacoteca, em sua segunda edição, recebeu obras de artistas de todas as regiões do Brasil. Após a seleção, 32 artistas foram escolhidos para integrar a mostra e oito trabalhos serão premiados hoje. Segundo a gestora cultural do espaço, Juliana Freire, 41, o processo de atuação do espaço começou bem antes, com atividades artísticas. “Tivemos oficinas de canto, teatro e grafite pela primeira vez, além de cinema para crianças, com o projeto Cinematógrafo no Beiru. Também promovemos rodas de conversa com mulheres do Calafate, batalhas de rima e slam. É um movimento contínuo”, conta.
“Poder oferecer um evento dessa envergadura dentro da periferia é o ponto alto”, diz Anderson Cunha, 46, idealizador, curador e um dos expositores. “Queremos exaltar a potência que existe dentro da periferia, valorizar outras vivências, discursos e buscas”.
O festival também inclui rodas de conversa com artistas como MC Deusdetih, Jefferson Araújo, Andressa Monique e Bárbara Felina, realizadas em escolas públicas da região. Os encontros abordam os desafios e possibilidades da arte em territórios marginalizados e buscam fortalecer os vínculos da Pinacoteca com o território. A proposta envolve diversidade e inclusão, com uma roda voltada a artistas com deficiência e outra dedicada a mulheres artistas.
Para Juliana, a grande importância da Pinacoteca e do festival está em mudar o olhar sobre o que é a favela. “Quem nunca entrou numa favela costuma enxergá-la como lugar de falta, de carência. A gente quer mostrar o contrário: que esses lugares têm total capacidade de receber projetos de imensa beleza e grandeza estética. A favela é potência”.
Segundo ela, isso já é visível. “Hoje, as pessoas saem do Centro para ver uma exposição no Beiru. É um movimento que transforma o território, institucionaliza a favela como lugar de arte e cultura e mostra que não devemos nada a nenhum museu grande. Em termos de qualidade estética, de fruição, estamos no mesmo nível, ou até à frente”, afirma.
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As três mostras

Segundo Juliana, o primeiro e o segundo pavimentos vão abrigar as 32 obras do I Salão de Artes Visuais. A mostra marca um momento inédito na trajetória da instituição, o primeiro edital aberto voltado à valorização da produção artística em diálogo com territórios periféricos. Entre os selecionados estão Ane Souz (Bolhas de Sabão: Reflexos Efêmeros de um Patrimônio Eterno, MG), Carla dos Santos Fernandes (Exú Ni Olugbala, Ó Ku Ona Wa Sí Olorun, RJ), Daniel Lisboa (Neograma – Grades de Insegurança, BA) e outros.
A mostra também reúne artistas como Naiade Bianchi, Patrícia Chueke, Romário Oliveira, Sanara Rocha, Thiago Guimarães e Caetano Negras, Vitor Bárbara, Analú Silva, Maria Isabel Moura Teixeira (Marry), Juliana Santos, Mariana Maia, Timóteo Lopes, Cho, Beatriz Vitória, Camille Moreira e Karin Cagy, entre outros nomes da Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro e outros estados. “Vamos premiar oito obras e abrir três mostras: a exposição E o Sol é para Todos, de Anderson AC; o resultado das oficinas formativas; e o Salão de Artes Visuais, nossa grande cereja do bolo”, resume a gestora.
A premiação foi dividida em três categorias: Prêmio Yêda Maria (produções bidimensionais), Prêmio Mestre Didi (obras tridimensionais) e Prêmio Presente, Arte & Futuro, voltado a artistas com até 18 anos. As obras vencedoras, com prêmios entre R$ 1.000 e R$ 2.000, passam a integrar o acervo da Pinacoteca, fortalecendo sua missão de promover o acesso à arte contemporânea e ampliar a representatividade de vozes periféricas.
Para contemplar a exposição, nas escadas e paredes estarão cerca de 50 trabalhos da mostra Beiru Criativo, realizados por alunos dos cursos de formação gratuitos promovidos pelo festival nas áreas de fotografia, pintura e serigrafia. As oficinas foram ministradas por Álex Ìgbó, Anderson AC, Nana Brasil e Pablo Moura, entre julho e setembro.
No terceiro pavimento, o público encontrará a instalação E o Sol é para Todos, assinada por Anderson AC, idealizador da casa, com 20 retratos inspirados em moradores e personagens históricos do bairro. Segundo o artista, a série é fruto de um processo de escuta e envolvimento direto com a comunidade e propõe reposicionar as identidades periféricas no centro da narrativa artística. “Hoje, eu pinto sobre retalhos de tecido. Passei a rasgar as telas porque o tecido rasgado, para mim, é um símbolo dessa herança colonial perversa, ligada à violência que ainda existe na periferia. Esses problemas atuais vêm de um passado escravocrata e colonial e do processo de abolição que não trouxe reparação alguma. Então, eu pinto sobre retalhos para evidenciar essa violência. Mas, nesta exposição sobre as pessoas do Beiru, eu não rasgo as telas. Pinto os retratos da mesma forma como os nobres eram pintados antigamente, reis, rainhas, membros do clero, usando o gênero do retrato para registrar e imortalizar a imagem dessas pessoas”, conta AC.
“A ideia é trazer para o centro pessoas comuns da comunidade e quase ‘sacralizar’ essas imagens. Dar a elas uma posição de destaque, usando um gênero artístico que, durante muito tempo, representou apenas a elite”, nota.
Educação, pertencimento

Criada em 2021, a Pinacoteca tem se tornado referência em arte, educação e transformação social. O espaço nasceu do desejo de Anderson de retribuir o que recebeu da sociedade e transformar sua dor em ação coletiva. “Com o tempo, percebi que a produção que eu fazia aqui no Beiru tinha muita potência, mas as pessoas da comunidade não tinham acesso. As obras iam para museus e galerias fora, enquanto aqui havia um cenário de violência e exclusão”, conta.
“Meu trabalho tem muito a ver com a memória e com a perda do meu irmão, assassinado em 2008, dentro da casa da nossa família. Esse fato despertou em mim um compromisso de entender o papel da arte como forma de transformação. É disso que nasce o desejo de criar um espaço cultural na periferia, para compartilhar conhecimento e mostrar aos jovens que existem outras possibilidades de existência além da violência, do crime e das dificuldades que muitas vezes são apresentadas como destino”, complementa.
Desde então, o espaço se tornou referência em arte e transformação social, com uma equipe formada por profissionais da cultura e mediadores da comunidade, entre eles a gestora Juliana Freire, Talita Cerqueira e Rosimeire Santos, além de três jovens mediadores em formação no campo da educação museal e da mediação cultural.
Para o artista, a transformação que ele busca é estrutural, e passa necessariamente pela educação. “Falta um plano educacional a curto, médio e longo prazo que integre educação, cultura e esporte. É preciso pensar a vida das pessoas da periferia de forma integral, dando a elas as mesmas oportunidades que as pessoas de classe média têm. Quando uma pessoa tem autoestima, ela acredita que pode sonhar, criar, ocupar espaços e transformar sua realidade”.
Segundo Juliana, um dos objetivos do festival e da mostra é dar mais visibilidade a outros artistas. “Queremos exaltar a potência que existe aqui, valorizar outras vivências, discursos e buscas. É um trabalho de formiguinha, mas estamos plantando com o desejo de que, um dia, tudo isso floresça ainda mais”. Hoje, o público é convidado a viver essa potência de perto. “É um momento de celebração. Queremos que as pessoas saiam do circuito usual e venham viver arte aqui. A Pinacoteca é um espaço de afeto, resistência e beleza”, conclui Juliana.
Lançamento das Mostras Finais do Pinacoteca do Beiru Festival de Artes Visuais / Hoje, 16h / Pinacoteca do Beiru (Rua Irmã Dulce, 1E – Tancredo Neves) / Entrada gratuita / Em cartaz até 25 de dezembro / Mais informações: pinacotecadobeiru.art
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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