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CRÔNICA

Contra a ditadura do colágeno: manifesto de uma pele cansada

Em uma prosa reflexiva, Antonia Damásio transforma o espelho, o corpo e o tempo em metáforas

Antonia Damásio*

Por Antonia Damásio*

26/10/2025 - 4:05 h
Confira a Crônica deste domingo, 26
Confira a Crônica deste domingo, 26 -

Daqui, de onde obnubiladamente me vejo, contemplo com satisfação a existência de pessoas que definitivamente sabem elogiar. Elogios sinceros me interessam. Aqueles que não estão atrelados à obtenção de vantagens imediatas sejam elas de que natureza for.

É possível destacar de maneira positiva as qualidades multidimensionais de qualquer pessoa que admiramos. O brilho dos olhos, o gosto musical, a modulação agradável da voz. A beleza reside onde queremos estar, alongar os instantes, lançar âncoras de permanência. Toda malícia, toda delícia, todo mistério.

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Quero morar no tom mostarda do meu vestido. Ele anda cansado de ser exibido por aí, mas acede ao meu desejo de colocar à vista a magnitude do contraste com o meu epitélio marrom. Sua textura, assim como as partituras da minha tez, denunciam a datação de carbono. Está todo cheio de bolinhas ásperas, semelhantes às minhas brotoejas. Envelheceu de mãos dadas comigo. Somos vintage. Ele tem a vantagem do recorte nostálgico. Quanto a mim, posso me reinventar com novos cílios, unhas postiças e um novo cabelo.

Enquanto atiço sensibilidades, ele sustenta olhares para além de mim. Indefectível modelagem do belo. Um tecido aveludado aformoseia o corpo, ainda que seu drapeado simule uma dobra adiposa de nostalgia. Nenhuma costureira o soube replicar. Nesse sentido, somos peça única, de assinatura exclusiva. Um tanto deprimente para um tecido que poderia ser social.

Há tantas versões de mim quanto possível. Havia um vestido balonê que me causava certo torpor por sua topografia bufante. Retroativamente, percebo que nos anos oitenta utilizei adornos de gosto duvidoso. Ombreiras excessivamente marcadas, corte de cabelo que não me favorecia. Ainda assim, ao olhar dos amores de ocasião, seguia o caminho de jovem desejável.

Desconfio que seja a juventude o objeto visado. Tão logo cruzamos o limite dos 50, os elogios mudam de tom. O que pode ser libertador, considerando que os hormônios encontram o caminho da pacificação. O sono é sagrado e os programas noturnos são esporádicos e planejados. O sono da beleza é indispensável para uma performance social satisfatória. O teatro reina. A poesia impera. O streaming salva vidas.

Os senhores descobrem a cor que azuleja o dia. As senhoras experimentam o vigor da musculação, reforçam a musculatura pélvica, cultuam a reposição. Muitos desencontros no caminho. A vida segue cheia de surpresas.

A mais recente no campo da sexualidade não foi a aquisição de um brinquedo sexual, mas a sorte do encontro com Leo Grande. Um salto triplo mortal e somos o ente que espia a intimidade de uma senhora elegante diante de sua escolha pelo circuito do prazer. Uma escolha repleta de angústia neurótica e protelatória. Por muitas vezes me angustiei por Emma Thompson. Não bastasse sua purgação em razão e sensibilidade, seria preciso protelar um tanto mais até que ela pudesse desfrutar daquilo a que se propôs.

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Num ato final ela se despe, depois de despir o moço, retirando-o da posição de objeto. Inúmeras questões de gênero atravessam cada cena. Uma teia complexa de percepções. O que quer aquela mulher tangencia a satisfação impossível. Não é tolerável fingir, sequer performar. Há um tensionamento que se esvazia na medida em que o desejo é remodelado nos termos do que é construído em cena. O spoiler pode instigar. Quem sabe abalar algumas estruturas.

Não posso deixar de mencionar que o filme trata de uma mulher branca povoada por angústias singulares que, ao mesmo tempo, são universais. Nem toda mulher, mas toda mulher… bebe da mesma fonte. Todas as mulheres merecem uma vida plena de satisfação e prazer sexual. Todas as mulheres merecem ser amadas. Repito isso como um mantra, consciente de que a solidão da mulher negra é uma condição muito peculiar, que cronicamente tangencia o recalque.

*Psicanalista

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