MUITO
Beijuzeiras de Areia Branca celebram ancestralidade e empoderamento
Coletivo Beijuzeiras de Areia Branca, de Lauro de Freitas, reinaugura espaço que preserva tradições ancestrais

Por Gilson Jorge

Ao ouvir uma sugestão para posicionar o rosto de uma determinada forma no momento de ser fotografada, Dona Detinha, 85 anos, emite um sorriso debochado e responde com um curto "ah, tá", como quem duvida de que uma determinada posição vai realçar a sua beleza na imagem. Sentada em uma cadeira de rodas há mais de um ano, depois que as pernas perderam definitivamente a força para mantê-la em pé, a anciã segue com uma atitude positiva frente à vida e exibe um contagiante vigor enquanto canta e toca o atabaque para que suas amigas do grupo Beijuzeiras de Areia Branca sambem no barracão do ponto de cultura e memória Aldeia Casa da Fonte, em Lauro de Freitas.
Mantido há dois anos pela historiadora Gildete Melo, descendente de pessoas que habitavam o terreno no século 19, o local abriga atividades que cultivam e ensinam tradições comunitárias, como a produção de beijus, fonte de renda histórica para 30 mulheres que integram o grupo, e o processo da formação da taipa, material utilizado na construção de casas na região.
As anciãs respeitam muito a liderança da jovem historiadora e, mesmo sendo a primeira a entrar em contato presencial com a reportagem, Dona Detinha não quis falar até que a parceira mais nova estivesse presente. Gildete, que estava na parte superior do terreno, chega sorridente e atrai a atenção de um ciumento e protetor pinscher. Pretinho estava tranquilo apesar de toda a movimentação e só estrilou quando uma das beijuzeiras se aproximou da sua tutora.
As beijuzeiras têm a sabedoria da paciência, mas também muito o que contar. Dona Detinha, por exemplo, vem de uma família em que os homens saíam de madrugada montados em equinos e levavam no lombo dos animais cestos repletos de carvão,feito na mata de Areia Branca, para comercializar em Salvador, principalmente nos bairros da Liberdade e São Caetano. Na volta, traziam do mercado carne para as refeições da família.
Às mulheres, desde a infância, cabia a venda de beijus, entoando cantigas pelas ruas de Salvador e do povoado de Santo Amaro de Ipitanga, nome original da região que em 1962 se transformaria no município de Lauro de Freitas, batizado em homenagem ao engenheiro e político morto em 1950 em um acidente aéreo em Bom Jesus da Lapa, enquanto fazia campanha eleitoral para o cargo de governador da Bahia.
Apesar da pobreza na infância, Dona Detinha lembra daqueles tempos como dias felizes. "Não tinha violência, não tinha roubo, porque ninguém tinha nada", diz a anciã, avaliando que não se precisava de muita coisa para ser feliz. "À noite, só tinha luz quando a lua tava cheia". Ainda hoje, de certa forma, a escuridão continua assim, pelo menos no trecho da Travessa Dois de Julho, que fica em frente ao portão da casa. Gildete solicitou à prefeitura-bairro de Areia Branca um refletor de luz no poste e também a pavimentação da travessa, que é barro só. Um servidor municipal que esteve na aldeia na terça-feira disse que "o que for possível será feito".

Antes da criação do município, Ipitanga, que na cultura ameríndia significa "águas avermelhadas", era uma freguesia da capital baiana, com forte presença indígena e negra. Além do Quilombo Quingoma, na vizinhança há manifestações culturais na região que remontam à luta dos negros escravizados pela liberdade. Como o Sariguê de Areia Branca, uma manifestação centenária que conta a história de um personagem em fuga, e que ficou praticamente esquecida por décadas até ser retomada recentemente por Gildete.
"Eu não alcancei o desfile na rua, mas comecei a ouvir a história dos mais velhos para entender o que era", explica a historiadora, acrescentando que a comunidade costumava usar nomes de animais nos seus personagens. "O sariguê era um dos nossos, que fugiu do engenho e lutava por sua liberdade”.
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Originalmente, a roupa do sariguê era feita com uma colcha de retalhos. O personagem usava também uma máscara de pano, realçando a noção de que era alguém que se escondia para não ser capturado. Uma curiosidade atual sobre o vestuário das beijuzeiras é que, de vez em quando, uma costureira que mora na comunidade vai à Avenida Sete, em Salvador, e compra um padrão de tecido que é usado por todo o grupo, o que simboliza o pertencimento coletivo à mesma aldeia.
De fato, muitas mulheres vêm do mesmo núcleo familiar. Gildete explica que sua família herdou o sobrenome de Ladislau de Melo, um senhor de engenho da região. E o histórico de sua família, assim como de outras locais, inclui a escravidão, a busca da liberdade e a fase em que os libertos ocupavam o terreno como rendeiros, pessoas que obtinham renda com trabalhos fora do território e pagavam ao dono da terra pelo direito à moradia.
Em 1850, após a proibição do tráfico negreiro, Dom Pedro II promulgou a Lei da Terra, que dificultava a compra de terrenos das sesmarias por ex-escravizados e pobres, concentrando latifúndios em poucas mãos.
"A minha tataravó, Victória de Melo, era uma indígena que foi escravizada aqui nos territórios de Ipitanga. Já minha bisavó nasceu em 1876 dentro da mata, nasceu livre porque a mãe dela fugiu do engenho", explica Gildete, cujo pai trabalhou como rendeiro para poder manter a família em Areia Branca. Até hoje, a posse da terra não foi regularizada. "A gente paga o IPTU, mas não tem escritura", conta a historiadora.
Em meio ao avanço das construções ao redor, os moradores buscam ao menos a certificação como comunidade quilombola. "Como reconhecimento da questão identitária, mas também como salvaguardar a história de Ipitanga, a história da atual Lauro de Freitas. Nós já fomos reconhecidos pelo Ministério da Cultura como ponto de cultura", afirma Gildete.
Sustento
Após a abolição da escravatura, a produção de beijus para venda foi a atividade econômica que a comunidade encontrou como principal forma de sustento. Uma prática que foi transmitida através de gerações.
Mãe de sete filhos, Dona Zizi criou a sua prole levando beiju seco e pamonha para vender na feira. Aos 72 anos, ela já está aposentada e atualmente só produz o quitute em eventos. Mas guarda no coração as histórias doces e salgadas que rechearam a sua vida em Areia Branca. "Eu fui filha vendendendo beiju, mas também fui mãe de meus pais vendendo beijus. Meu pai caiu numa fraqueza, ficou doente e eu tive que ajudar meus pais", conta Dona Zizi.
Outra beijuzeira, Dona Maria fala sobre sua trajetória com muito mais ênfase e emoção do que suas companheiras. A veemência de suas palavras e gestos traz um misto do orgulho atual da sua herança de vida e do reconhecimento do quanto foi duro para a criança de nove anos que aceitar a tarefa de sair vendendo beijus e preparar a taipa. "Minha mãe me mandava para a feira vender e eu dizia que não queria ir, porque estava cansada", lembra a anciã.
Era uma infância dura, em que à noite a pequena Maria ajudava os pais a fazer taipa e de manhã acompanhava a mãe ao Largo do Tanque, em Salvador. Enquanto sua genitora ficava vendendo beijus em um ponto fixo, Maria circulava pelas ruas oferecendo o mesmo produto e depois voltava ao lugar onde haviam se separado. "Eu chorava, dizia que não queria ir e ela falava: Aqui é a casa do bom homem, minha filha. Quem não trabalhar, não come", lembra.

Na sequência, Dona Maria aponta para uma parede e explica o que aprendeu a fazer ainda pequena. "Minha mãe me ensinou a inchimitear, que é botar aqueles paus ali, a envarar, que é aqueles paus deitados ali", declara a anciã.
A água da fonte na entrada do terreno, que dá nome à instituição, também serve para que o grupo amasse argila quando se precisa erguer paredes."A taipa pressupõe uma coletividade. Ninguém faz taipa sozinho", afirma o estudante de Geografia Mateus Fernandes, casado com Gildete.
Enquanto mostra a cozinha, feita de taipa, Mateus explica que parte de uma parede foi feita por estudantes que visitaram a aldeia. "A gente recebeu aqui uma turma da Creche Pré-Escola Primeiro Passo Cassange, com crianças de cinco e seis anos, e eles fizeram essa parede", conta Mateus.
Patrimônio
Uma das parceiras que Gildete encontrou pelo caminho e que ajuda o ponto cultural é a artista, ativista cultural e membro do Conselho Estadual de Cultura da Bahia Maria JusTina Tude, que busca promover a inserção de agentes culturais no âmbito da memória e do patrimônio com as políticas culturais do Estado da Bahia. "Eu fico com o radar ligado para o que está acontecendo com respeito à salvaguarda da memória nas mais diversas feições", explica a artista.
As atividades culturais no local começaram em 2008, com alunos de Gildete da rede pública que eram levados para, sob a sombra de uma árvore, ouvir da mãe da historiadora relatos de como viviam os antepassados na região. Aos poucos, foram incorporadas manifestações culturais locais e, em 2023, foi construído o barracão.

No ano passado, a queda de um coqueiro destruiu parte da infraestrutura construída e organizou-se uma vaquinha, que arrecadou cerca de R$ 3 mil para o conserto. Um aporte bem maior, R$ 50 mil, foi recebido quando o grupo foi contemplado por um edital da Fundação Elas, uma ONG criada no Rio de Janeiro em 2001 e que, com recursos de entidades internacionais, apoia projetos sociais conduzidos por mulheres ou pessoas trans. De cordo com Gildete, parte do dinheiro doado pela ONG foi usado para remunerar as anciãs.
As atividades do grupo não se limitam ao espaço da aldeia. No último dia 29, a Associação dos Moradores de Areia Branca promoveu um café com beiju, um encontro entre as beijuzeiras e estudantes da Escola Municipal Edvaldo Boaventura.
A festa de reinauguração da Aldeia Casa da Fonte começa na sexta-feira, dia 17 de outubro, às 14h, com depoimentos pessoais das beijuzeiras e de representantes de organizações públicas e privadas. Logo depois, a historiadora Gildete Melo faz uma palestra sobre memória e patrimônio. No sábado, dia 18, acontecem atividades gastronômicas e culturais, incluindo as tradições de Areia Branca, poesia, dança e rap. A entrada é gratuita. Mais informações sobre o grupo podem ser obtidas no Instagram, na página @beijuzeirasdeareiabranca.
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