Doença fúngica que passa de gatos para humanos alerta para cuidados
Governo federal torna compulsória notificação da esporotricose anos após a Bahia adotar protocolo; gatos domiciliados devem ficar em casa

A socióloga aposentada Terezinha Dantas de Menezes, 85 anos, e a assistente social Dayana Miranda dos Santos, 44 anos, nem pensaram duas vezes quando se depararam com dois felinos abandonados nas ruas de Salvador. Cuidaram deles como se fossem seus, por serem boas praticantes do que preconiza a abordagem integrada da saúde única.
Mas acabaram vítimas das consequências de um processo que desconsidera a conexão entre a saúde humana, animal, vegetal e ambiental. A lógica perversa do abandono dos animais acabou afetando a saúde de duas tutoras de pets saudáveis. Terezinha e Dayana foram contaminadas pelo Sporothrix brasiliensis, fungo causador da esporotricose que atinge humanos e animais (veja artigo abaixo).
“Era uma gatinha de rua que apareceu aqui na praça que eu peguei para alimentar”, conta Terezinha, que levou a felina ao veterinário porque verificou que ela estava doente. Até então, ninguém sabia que o animal tinha o fungo.
Arisca, a gatinha acabou mordendo a socióloga e o pedreiro que estava trabalhando na casa dela. O animal morreu mesmo após os cuidados veterinários.
E o ferimento de Terezinha ficou. Não sarava de jeito nenhum. Ela foi a médicos das redes pública e privada que não identificaram a doença. Somente depois de muitos antibióticos, ela descobriu que estava com esporotricose.
O caso de Dayana Miranda dos Santos foi semelhante - após socorrer um gatinho de rua acabou contraindo a doença. “Apareceram na minha perna direita uns carocinhos que coçavam e inflamavam muito rápido”, contou. Ela também sofreu com a demora no diagnóstico correto. “Vários médicos achavam que era picada de inseto, me pediram até para fazer exame de leishmaniose”, lembra ela que teve até indicação de cirurgia. Em uma emergência, foi uma enfermeira que identificou o problema e ela foi finalmente tratada corretamente.
Vítimas do abandono
“Os gatos são vítimas da esporotricose, do abandono e da falta de políticas públicas eficientes. O fungo infecta e mata os felinos de forma agressiva. Quebrar o ciclo de transmissão é a forma mais eficaz de controle”, afirma o médico veterinário José Eduardo Ungar de Sá.
Ele destaca certo despreparo dos profissionais na identificação da doença e desinformação dos tutores. Por desconhecimento, alguns permitem que gatos domiciliados saiam de casa.
A empresária Júlia Galvão teve sorte e não se contaminou após adotar a felina Bia, 3 anos. Nem ela, nem os outros animais sob sua tutela. “Os primeiros sintomas foram uma ferida na orelha, que não cicatrizava e que vinha desde a época da adoção”, explica, ressaltando que os sintomas respiratórios também foram observados. Foram feitos exames clínicos e laboratoriais e o tratamento com itraconazol. Atualmente, Bia está bem.
Já a aposentada Marli Campos Santos, 61 anos, atribui a contaminação do seu gatinho Adonai às escapadelas que ele dá. Apesar do cuidado da família e, mesmo castrado, Adonai costuma fugir de casa e provavelmente foi assim que contraiu a doença. “Ele agora está tomando o medicamento e já apresenta certa melhora”, conta, explicando que, para evitar contaminação da família, tem redobrado cuidados com a higiene do ambiente e das mãos após contato com o gato.
“Os tutores têm que ficar atentos para acessar o sistema de saúde´, é preciso informação, prevenção e tratamento”, orienta José Eduardo Ungar de Sá.
Notificação
Os casos ilustram um cenário que levou o Ministério da Saúde a tornar a notificação da doença em humanos compulsória. A mesma medida já havia sido adotada pela Secretaria de Saúde do Estado da Bahia (Sesab) há cerca de dois anos. Já o município de Salvador informou que já notifica compulsoriamente a Esporotricose humana desde 2018.

"A notificação obrigatória permite que os serviços epidemiológicos possam ter dadados mais robustos sobre a prevalência da doença, tornando mais fácil o controle”, explica o médico infectologista Robson Reis, professor da Escola Bahiana de Medicina. Ele destaca que o diagnóstico não é tão simples e é importante verificar a história clínica do paciente.
Dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) revelam que foram notificados na Bahia, até o inicio deste mês, 468 casos da doença em humanos e 680 casos em felinos, representando uma redução de 24,3% e 35,6%, respectivamente, em comparação ao mesmo período do ano anterior.
Salvador registrou, em 2023, 228 casos de esporotricose humana e 462 casos em 2024, segundo a Secretaria da Saúde de Salvador. Em nota, o órgão informou que tem realizado constantes ações de educação aos profissionais e nas comunidades, além de fornecer o tratamento medicamentoso tanto para animais e humanos afetados.
Por meio do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ), é feito o atendimento à comunidade mediante solicitações recebidas via Fala Salvador (156) ou por formulário eletrônico (Google Forms), por tutores individuais, organizações não governamentais (ONGs) ou protetores independentes.
O Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV) informou que atua na cobrança de políticas públicas para controle da doença.
A ONG Doce Lar, que tem entre os mais de 700 animais que abriga 230 felinos, costuma seguir à risca os critérios de controle da doença. “A prevenção é feita através do isolamento dos animais resgatados e o controle por meio de gatis exclusivos para felinos com a doença”, explica Constança, gestora da ONG. Foi para lá que foram mais de 300 gatos recolhidos da antiga colônia no bairro de Piatã. “Eles estavam na maioria gripados, magros e quase todos ariscos; cerca de 30 com esporotricose”, descreve Constanza cuja ONG foi aprovada num processo de seleção da prefeicura para acolher os animais.
Segundo a Sesab, a maior incidência da doença ocorre em Salvador, Dias D´Ávila e Feira de Santana, com registro de redução da incidência na capital. A ação integrada entre o CCZ e a Diretoria de Proteção Animal (Dipa) resultou na redução de casos na capital. “O controle populacional através de castrações reduz a disseminação de doenças, anula a proliferação de animais errantes e diminui as chances de abandono”, explica Naiara Reis, médica veterinária da Dipa.
“A recomendação atual orienta os tutores ao atendimento dos animais por médicos veterinários e, em caso de evolução a óbito, os animais não devem ser enterrados com vistas à não contaminação”, explica a coordenadora de Doenças de Transmissão Vetorial da Sesab, a médica veterinária Luciana Bahiense da Costa.
Em nota, o Ministério da Saúde informou que, até o final de 2024, 13 estados (RJ, PE, RN, PB, MG, ES, MS, AM, PR, BA, SP, RS e GO) já adotavam a notificação localmente. “Com a notificação nacional, a partir de 2026 será possível consolidar dados para uma visão epidemiológica mais precisa, que irá subsidiar mais estratégias de prevenção”, diz.. O órgão destaca que, desde 2024, tem ampliado a vigilância das micoses endêmicas, promovendo a atualização de profissionais. O SUS oferece os antifúngicos itraconazol e anfotericina B.
DR. PET
Veja como evitar que seu gato seja contaminado
Entrevista com: Fernanda Marques Santos, médica veterinária
Muitos tutores desconhecem as formas de transmissão e expõem seus bichos à contaminação por não saberem os riscos e os cuidados com a prevenção. Qual a principal medida de combate e prevenção à esporotricose?
A principal forma de cuidado de animais tutelados para evitar o contato com a esporotricose é manter os animais em domicílio, principalmente os gatos. Evitar os passeios que não sejam na presença do tutor, além de manusear terras e jardins com uso de luvas.
Como funciona o ciclo de contaminação e quais os principais vetores de transmissão da doença? Quais os animais mais afetados? Como a doença é transmitida aos humanos?
A esporotricose é uma micose subcutânea causada por fungos do gênero Sporothrix que entram no organismo, principalmente pela implantação do fungo na pele ou mucosas por meio de um trauma decorrente de acidentes com espinhos, palha ou lascas de madeira; contato com vegetais em decomposição; ou arranhadura ou mordedura de animais doentes, sendo, o gato, atualmente, o principal transmissor da doença, protagonista da esporotricose de transmissão zoonótica
Qual o exame que o tutor deve fazer para identificar a doença? Como se dá o tratamento?
Os exames indicados para confirmação diagnóstica são a citologia de pele e cultura fúngica. Porém, em algumas amostras não consegue identificar a presença do fungo, sendo necessário realizar exames mais específicos como biópsia. O tratamento é realizado com antifúngico oral por longo período, mesmo após o desaparecimento das lesões, além de associar algumas suplementações e outras drogas a partir da avaliação médica.
Qual a principal orientação aos tutores sobre prevenção e diagnóstico da doença?
Como prevenção deve-se evitar que gatos tenham acesso a rua onde tem maior chance de contato com animais doentes e ambientes contaminados.
ARTIGO
Tamires Viana
Médica veterinária
tamiresviana.mvet@gmail.com
A esporotricose é uma micose subcutânea causada por fungos do complexo Sporothrix spp, tradicionalmente associada ao contato com solo e matéria vegetal em decomposição. No Brasil, entretanto, ocorreu uma mudança epidemiológica marcada pela emergência de S.
brasiliensis, espécie de alta virulência e responsável pela transmissão zoonótica via felinos, hoje considerada a principal forma de disseminação.
Historicamente ligada a atividades ocupacionais com manipulação de terra e vegetação (jardineiros, agricultores, trabalhadores rurais), a doença passou a ter maior impacto urbano desde o final do século XX, com destaque para o surto iniciado no Rio de Janeiro que se expandiu para outras regiões do país, incluindo a Bahia.
No estado baiano, já há registros de casos humanos e felinos, o que motivou a elaboração de um Plano Estadual de Contingência pela SESAB, reforçando a necessidade de ações integradas de vigilância, controle e educação sanitária.
Apesar do predomínio atual da transmissão gato-humano, a via sapronótica clássica continua relevante, sobretudo para trabalhadores expostos ao solo e plantas. Assim, o uso de equipamentos de proteção (luvas grossas, proteção de antebraços, cuidados com feridas e higiene rigorosa) permanece essencial para reduzir o risco ocupacional.
O papel do felino na epidemiologia contemporânea
Os gatos são o principal elo da transmissão zoonótica no Brasil, devido às lesões cutâneas ulcerativas e altamente exsudativas, que abrigam grande carga fúngica. O comportamento felino (brigas, mordidas, arranhões e autolimpeza de feridas) aumenta a disseminação entre
animais e humanos, enquanto a mobilidade de gatos errantes ou semi-domiciliados e o abandono de doentes favorecem a expansão urbana da doença.
Na epidemiologia atual, coexistem duas rotas de transmissão:
* Sapronótica (ambiental) – inoculação traumática de fungo presente em solo e vegetais.
* Zoonótica (animal-humano) – contato direto com animais infectados.
Em áreas com alta densidade felina, predomina a transmissão zoonótica; em locais com maior presença ambiental do fungo, persistem os riscos ocupacionais. Assim, estratégias de controle precisam considerar ambas as vias para reduzir a propagação da esporotricose.
Saúde Pública, Saneamento e Determinantes Sociais na Esporotricose
O abandono de animais doentes, alta densidade de gatos comunitários, baixa castração, falhas na vigilância, diagnóstico e tratamento, bem como o manejo inadequado de resíduos, saneamento precário, moradias sem higiene adequada, criam ambientes favoráveis à persistência do Sporothrix. O aumento do contato entre humanos, animais infectados e ambientes contaminados cria um contexto propício à transmissão.
Surtos urbanos mostram que apenas tratar humanos ou animais isoladamente não resolve. A abordagem integrada em Saúde Única (One Health), com vigilância, controle populacional felino, educação sanitária, saneamento e gestão de resíduos é fundamental.
Riscos ocupacionais específicos e recomendações práticas
Trabalhadores expostos ao solo/plantas: utilizar luvas resistentes e proteção de antebraços; manter feridas cobertas; higienizar mãos e pele após o trabalho; procurar atendimento médico diante de lesões suspeitas após contato com terra ou vegetais.
Profissionais de saúde veterinária: adotar EPIs (luvas, óculos de proteção); realizar contenção segura de gatos suspeitos evitando contato direto com lesões; descartar corretamente materiais contaminados; orientar tutores sobre isolamento do animal e necessidade de tratamento.
Diretrizes nacionais: protocolos brasileiros de manejo da esporotricose em felinos e humanos devem ser consultados e adaptados às condições locais.
Na Bahia, a confirmação de casos felinos e o risco epidêmico exigem ações integradas: vigilância em saúde humana e animal, campanhas de educação sobre guarda responsável, ampliação da capacidade diagnóstica e oferta de tratamento. Essas medidas devem ser acompanhadas por políticas de saneamento, manejo de resíduos, controle populacional de felinos e proteção ocupacional de trabalhadores expostos ao solo. A adoção de uma abordagem One Health, envolvendo saúde pública, setor veterinário e sociedade civil, é fundamental para reduzir a transmissão e mitigar o impacto da esporotricose no estado.
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