CRÍTICA
Com Wagner Moura contido e potente, O Agente Secreto sinaliza maturidade do cinema brasileiro rumo ao Oscar
Filme de abertura do 58º Festival de Brasília cria trama policial na ditadura para falar de história e apagamento

Por Rafael Carvalho | Especial para A Tarde*

Finalmente, O Agente Secreto nasceu no Brasil. Depois de uma pré-estreia no Recife, na última quarta, o filme foi apresentado na noite de abertura da edição comemorativa de 60 anos do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Foi um verdadeiro evento que contou com a presença do diretor Kleber Mendonça Filho e boa parte do elenco e da equipe criativa – a ausência de Wagner Moura, protagonista do filme, não deixou de ser sentida.
De qualquer forma, foi uma noite de celebração para receber um dos filmes brasileiros mais aguardados e celebrados do ano, vide sua trajetória internacional e, mais recentemente, a escolha para representar o Brasil no próximo Oscar, quem sabe repetindo o feito de Ainda Estou Aqui, de Walter Salles.
Com prêmios importantes no Festival de Cannes, onde estreou em maio deste ano, tanto do júri oficial (Melhor Direção e Ator), quanto dos paralelos (venceu o prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema como melhor filme da competição de Cannes), o longa é, de fato, nossa melhor aposta.
As premiações e os diversos festivais por onde ele vem passando, sem falar da distribuição garantida nos Estados Unidos, criam uma visibilidade muito apropriada para o filme. Mas, acima de tudo, O Agente Secreto é uma obra de mestre, um filmaço que já poderia ser cotado ao Oscar simplesmente por suas qualidades narrativas.
Quem também está à altura do reconhecimento que vem colhendo é Wagner Moura. E não apenas pelo sucesso de sua carreira internacional, mas por uma composição de personagem bastante diferente de tudo que ele já fez, com efeitos superiores.
Esqueçam o Capitão Nascimento de Tropa de Elite ou o Pablo Escobar de Narcos. Aqui, o ator trabalha em um tom muito mais plácido e contido e, no entanto, alcança uma complexidade de atuação ao mesmo tempo naturalista e forte em cena, sem precisar se ancorar em excessos.
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Amor e Dor
Logo no início do filme, o personagem de Moura, Marcelo, chega em um fusca amarelo a um posto de gasolina na beira da estrada, a caminho do Recife. No chão, há o corpo ensanguentado de um homem morto mal coberto por um papelão. O indivíduo foi aparentemente alvejado em uma confusão incerta, mas a polícia não veio resgatá-lo porque estamos em pleno Carnaval de 1977.
O clima de apreensão e de que algum tipo de perigo paira no ar vai ser a tônica do filme inteiro, não só com a chegada de dois polícias nessa cena - mais interessados em interrogar Marcelo do que em resolver a questão do cadáver no chão -, mas também pelo comportamento sempre muito arredio com que o protagonista se move na sua busca por fugir de uma perseguição política.
Marcelo chega a Recife e é acolhido por dona Sebastiana (Tânia Maria, presença de cena marcante), uma senhora que ajuda outras pessoas ‘refugiadas’ em uma espécie de pensão para os ‘desajustados’.
Aos poucos, vamos descobrindo o passado do personagem e os motivos da sua fuga, enquanto ele se reencontra com o filho pequeno que deixou na capital pernambucana e com o sogro (Carlos Francisco), pai de sua mulher já morta (vivida por Alice Carvalho).
Há, portanto, toda a violência estatal promovida pela ditadura militar a permear a trama (com direito a dois matadores, vividos por Gabriel Leone e Roney Villela, contratados para dar fim em Marcelo). Mas, por outro lado, há também uma rede de afetos e um sentido de união entre aqueles em que é possível confiar em tempos de suspeita constante.
O Agente Secreto equilibra, a todo instante, amor e dor na trajetória deste homem que quer apenas viver sua vida em tranquilidade como cidadão honrado. É um filme que trabalha na sutileza e nas entrelinhas seu discurso político, sem deixar dúvidas de que lado está.
O longa apresenta ainda um olhar muito aguçado e carinhoso para a cultura popular brasileira e pernambucana, não apenas pela reconstituição de época primorosa, mas também na trilha sonora – que mistura banda de pífanos de Recife com Ennio Morricone –, nos cartazes e letreiros de filmes que vemos constantemente – o Cinema São Luiz, no centro de Recife, é uma locação importante para o filme –, e até mesmo no vestuário e na fotografia que remetem às produções policiais dos anos 1970.
Reconstruir memórias

Apesar de ser uma trama policial que fala de repressão e violência ditatorial, é possível afirmar também que, em sentido mais amplo, O Agente Secreto é um grande estudo sobre a história do Brasil e sua memória, seja ela íntima ou coletiva.
Um grande indicativo disso são as cenas, no tempo atual, de duas jovens universitárias que pesquisam os arquivos do caso de Marcelo. É como se a trama que estamos acompanhando fosse fruto de um trabalho de arqueologia de um passado recente, remontado como um quebra-cabeça histórico que é, também, a forma como nossa memória reconstitui nossas vivências e lembranças.
O premiado longa de Mendonça tangencia muitos temas: a perseguição política e intelectual durante a ditadura, a violência policial e estatal, as pequenas e grandes corrupções dentro da máquina pública e de como isso dissemina mais violência nas pessoas, como reação e proteção, além dos focos de resistência e união que se criam nas crises. Tudo está lá.
Mas o filme se utiliza do caso de Marcelo para mirar mesmo em algo maior que se revela nos minutos finais: O Agente Secreto é sobre como é possível resgatar e, principalmente, reconstruir nossas memórias e juntar os cacos, sejam eles históricos ou individuais.
E o quanto de sacrifício é preciso fazer para não sucumbir ao peso de nosso próprio passado, sobretudo em um país forjado no sacrifício de seu povo. Em última instância, é também sobre como o próprio cinema se mostra um veículo potencial para tal empreendimento.
*Viajou ao Festival de Brasília
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