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AMAB EM FOCO

Posso falar, doutor?

Confira a coluna Amab em Foco

Álerson do Carmo Mendonça*

Por Álerson do Carmo Mendonça*

14/02/2025 - 3:00 h
Imagem ilustrativa da imagem Posso falar, doutor?
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Certa vez, em uma audiência na Vara de Violência Doméstica em que atuo, ingressou na sala uma jovem senhora - tinha seus quarenta e poucos anos, mas aparentava bem mais -, negra, trajes surrados possivelmente a denunciar sua condição social, “do lar”, mãe de cinco filhos, andar lento e cabisbaixa. Tratava-se da dona Maria (nome fictício), vítima naquele caso.

Após explicar o objetivo da audiência e como se daria a ordem dos questionamentos pelas pessoas que ali se encontravam, o promotor de justiça, educadamente, lhe fez a primeira pergunta. Antes de respondê-la, dona Maria olhou para mim, com um visível temor reverencial, e me perguntou: posso falar, doutor?

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Essa frase, dita tantas vezes por mulheres que buscam ajuda, reflete mais do que um pedido de permissão; ela traduz um clamor por dignidade, reconhecimento e justiça. No Brasil, onde a violência doméstica ainda atinge proporções alarmantes, ouvir essas mulheres não é apenas um ato de humanidade – é uma necessidade urgente para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Como juiz de uma vara de violência doméstica, testemunho diariamente a força e a coragem de mulheres que enfrentam o medo de romper o ciclo de violência. Mas também vejo o quanto nosso sistema ainda silencia essas vozes. Não raras vezes, a linguagem do Judiciário, a burocracia e até mesmo a falta de empatia transformam um espaço que deveria ser acolhedor em mais um ambiente de exclusão.

Para essas mulheres, não basta apenas abrir as portas da Justiça; é preciso ir além. É necessário escutá-las em suas singularidades – mães, trabalhadoras, jovens, idosas, negras, indígenas, quilombolas, LGBTQIA+. Cada uma carrega suas próprias marcas, histórias e lutas. A violência que enfrentam não é igual, pois as desigualdades de gênero se entrelaçam com o racismo, a pobreza e outras formas de opressão. A mulher universal, padrão eurocentrista, não existe. Existe a dona Maria: negra, pobre, combalida pelas agruras de uma vida perpassada pela violência.

Muito se diz sobre violência doméstica e de políticas públicas para essas mulheres, pouco se escuta delas! Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, em conjunto com o IPEA, no ano de 2019, ao relatar as experiências e percepções de vítimas de violências doméstica e familiar sobre o atendimento recebido pelo Poder Judiciário, conclui ter sido “comum observar a frustração dessas mulheres frente ao espaço de fala que lhes era concedido.”

Lélia González, precursora do movimento negro feminista no Brasil já dizia que “falar é um risco”, talvez por isso o medo, o silêncio. Soraia da Rosa Mendes, intelectual feminista brasileira, afirma que “nós mulheres, sempre fomos muito mais ‘faladas’, do que efetivamente falamos”.

Em um mundo onde os estereótipos ainda insistem em definir o valor de uma mulher, ouvir é o primeiro passo para desconstruir essas barreiras. Como dizia Rubem Alves: é preciso ter “escutatória”. E ouvir de verdade não significa apenas oferecer espaço para que falem, mas transformar suas palavras em ações: decisões mais rápidas, acolhimento eficaz e políticas públicas que reconheçam as mulheres em toda a sua diversidade.

"Posso falar, doutor?" não é apenas um pedido! É um grito por humanidade, por respeito, por vida. Que nós, como sociedade, sejamos capazes de responder a esse clamor com ações concretas, para que cada mulher que se levanta contra a violência encontre apoio, acolhimento e justiça.

Afinal, quando elas falam, todas e todos nós ganhamos. Pode falar, dona Maria!

*Juiz de Direito da 1ª Vara de Violência Doméstica e Familiar de Vitória da Conquista (BA)

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